quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Por que Escrevo? - Elie Wiesel

Publicado em Confronting the Holocaust: the impact of Elie Wiesel. (Rosenfeld, Alvin H. e Irving Greenberg, eds.) Bloomington: Indiana University Press, 1978

Por que escrevo? Talvez para não enlouquecer. Ou, ao contrário, para chegar ao fundo da loucura.

À semelhança de Samuel Beckett, o sobrevivente se expressa "em désespoir de cause" por não haver outra maneira.

Falando da solidão do sobrevivente, o grande poeta e pensador ídiche e hebraico Aaron Zeitlin se dirige àqueles que o deixaram: seu pai, morto; seu irmão, morto; seus amigos, mortos: "Vocês me abandonaram", diz-lhes. "Vocês estão juntos, sem mim. Eu estou aqui. Sozinho. E fabrico palavras".

E eu também, como ele. Também digo palavras, escrevo palavras, relutantemente.

Existem atividades fáceis, bem mais agradáveis. Para o sobrevivente, porém, escrever não é uma profissão, e sim uma atividade, um dever. Camus diz que é "uma honra". Em suas próprias palavras: "entrei na literatura através da adoração". Outros escritores dizem: "através da ira; através do amor". Falando por mim, eu diria: "através do silêncio".

Foi ao buscar, ao tentar o silêncio que comecei a descobrir os perigos e o poder da palavra. Nunca pretendi ser um filósofo, ou um teólogo. O único papel que procurei foi o de testemunha. Eu acreditava que, tendo sobrevivido por acaso, era minha obrigação dar significado à minha sobrevivência, justificar cada momento de minha vida. Sabia que era preciso contar a história. Não transmitir uma experiência é traí-la; é isso que a tradição judaica nos ensina. Mas como fazê-lo? "Quando Israel está no exílio, assim está a palavra", diz o Zohar. A palavra desertou do significado que lhe cabia transmitir – impossível fazê-lo coincidir. O deslocamento e a mudança são irrevogáveis. Isso nunca foi mais verídico do que logo após o cataclismo. Nós todos sabíamos que jamais, jamais poderíamos dizer o que tinha de ser dito, que jamais poderíamos expressar em uma escala absoluta, em palavras coerentes, inteligíveis, nossa experiência de loucura. A caminhada através da noite chamejante, o silêncio antes e depois da seleção, o rezar monótono dos condenados, o Kadish dos moribundos, o terror e a fome dos doentes, a vergonha e o sofrimento, os olhos apavorados, os olhares dementes. Pensei que nunca seria capaz de falar deles. Todas as palavras pareciam inadequadas, gastas, tolas, sem vida, e eu as queria ardentes. Onde iria eu descobrir um vocabulário novo, uma linguagem primeva? A linguagem da noite não era humana; era primitiva, quase animal – grito roucos, berros, gemidos abafados, uivos selvagens, o som de espancamentos... Um sádico batendo loucamente, um corpo caindo; um oficial ergue o braço e uma comunidade inteira caminha em direção a uma cova comum; um soldado maneia os ombros e mil famílias são dilaceradas, para serem reunidas apenas pela morte. Essa é a linguagem do campo de concentração. Negava qualquer outra linguagem e tomava o seu lugar. Em vez de um elo, tornou-se um muro. Seria possível transpô-lo? Poderia o leitor ser conduzido ao outro lado? Eu sabia que a resposta era negativa, e no entanto eu também sabia que o "não" teria de se tornar "sim". Era o desejo, a última verdade, dar-lhe um nome. Seria preciso forçar o homem a olhar.

O medo de esquecer: a principal obsessão de todos aqueles que passaram pelo universo dos condenados. O inimigo contava com a descrença e o esquecimento das pessoas. Como frustrar essa trama? E se a memória ficasse oca, sem substância, o que aconteceria com tudo que havíamos acumulado pelo caminho?

Lebre-se, disse o pai ao filho, e o filho ao seu amigo. Recolha os nomes, os rostos, as lágrimas. Se, por um milagre, você sair disso vivo, tente revelar tudo, sem omitir nada, sem nada esquecer. Tal foi o juramento que todos fizemos: "Se, por algum milagre, eu sair vivo, dedicarei minha vida a testemunhar em nome daqueles cuja sombra recairá sobre a minha eternamente".

É por isso que escrevo certas coisas em vez de outras: para permanecer fiel.

Há, obviamente, ocasiões de dúvida para o sobrevivente, ocasiões em que cederíamos à fraqueza, ou ansiaríamos por alívio. Ouço dentro de mim uma voz que me diz que já chega de prantear o passado. Eu também quero cantar o amor e sua magia. Eu também quero celebrar o sol, e a aurora que anuncia o sol. Gostaria de bradar e bem forte: "Ouçam, ouçam bem! Eu também sou capaz de vitória, estão ouvindo? Eu também estou aberto ao riso e à alegria! Quero andar com passos largos, a cabeça erguida, meu rosto descoberto. Sem ter de apontar para as cinzas lá no horizonte. Sem ter de alterar os fatos para esconder sua trágica feiúra. Para um homem nascido cego, até Deus é cego, mas olhem, eu vejo, não sou cego". Sente-se vontade de gritar isso, mas o grito transforma-se em murmúrio. É preciso fazer uma escolha, é preciso permanecer fiel. Uma grande palavra, eu sei. Não obstante, eu a uso, ela condiz comigo. Tendo escrito coisas que escrevi, sinto não poder mais brincar com palavras. Se digo que o escritor em mim quer permanecer leal, é porque é verdade. Esse sentimento move todos os sobreviventes: eles não devem nada a ninguém, mas tudo aos mortos.

Devo a eles minhas raízes e memória. Tenho a obrigação de servir-lhes de emissário, transmitindo a história do seu desaparecimento, mesmo que perturbe, mesmo que cause dor. Não fazê-lo seria traí-los, e a mim mesmo. E como me sinto capaz de transmitir seu grito aos brados, eu simplesmente olho para eles. Eu os vejo e escrevo.

Enquanto escrevo eu os questiono como questiono a mim mesmo. Acredito tê-lo dito antes, em outro lugar: escrevo para compreender tanto quanto para ser compreendido. Terei êxito algum dia? Por onde quer que se comece, atingi-se a escuridão. Deus? Permanece sendo o Deus da escuridão. O homem? Fonte da escuridão. As zombarias dos assassinos, as lágrimas das suas vítimas, a indiferença dos espancadores, sua cumplicidade e complacência, o papel divino em tudo isso: eu não compreendo. Um milhão de crianças massacradas: eu nunca compreenderei.
Crianças judias: elas freqüentam meus textos. Eu as vejo e revejo. Sempre as verei. Acossadas, humilhadas, curvadas como os velhos que as cercam como que para protegê-las, mas incapazes de fazê-lo. Estão cansadas, as crianças, e ninguém para lhes dar água. Estão com fome, as crianças, e ninguém para lhes dar uma côdea de pão. Estão com medo, e ninguém para tranqüilizá-las.

Caminham no meio da estrada, como vagabundos. Estão a caminho da estação, e jamais retornarão. Em vagões lacrados, sem ar e nem alimento, viajam em direção a outro mundo; adivinham para onde vão, elas sabem, e ficam caladas. Tensas, pensativas, ouvem o vento, o chamado da morte à distância.

Todas essas crianças, esses velhos todos, eu os vejo. Nunca paro de vê-los. Pertenço a eles. Mas eles, a quem pertencem?

Pessoas tendem a pensar que um assassino fraqueja ao se ver diante de uma criança, que esta desperta nele sua perdida humanidade. O assassino não pode mais matar a criança diante dele, a criança dentro dele.

Não dessa vez. Conosco foi diferente. Nossas crianças judias não faziam efeito sobre os assassinos. Nem sobre o mundo. Nem sobre Deus.

Penso nelas, penso em sua infância. Sua infância em uma cidadezinha judia, e essa cidadezinha não existe mais. Elas me assustam; refletem uma imagem de mim mesmo, uma que ao mesmo tempo persigo e da qual fujo – a imagem de um adolescente judeu que não conhecia temor, a não ser o temor a Deus, e cuja fé era total, confortadora, e não marcada pela angústia.

Não, eu não compreendo. E se escrevo, é para advertir o leitor que ele também não compreenderá. "Você não compreenderá, você nunca compreenderá", foram as palavras ouvidas por toda parte durante o reinado da noite. Eu só posso ecoá-las. Vocês nunca viveram sob um céu de sangue, nunca saberão como era aquilo. Mesmo se lessem todos os livros jamais escritos, mesmo se ouvissem todos os testemunhos jamais prestados, vocês permaneceriam do lado de cá do muro, jamais veriam de longe a agonia e morte de um povo, através da tela de uma lembrança que não é a sua.

Um reconhecimento de impotência e culpa? Eu não sei. Tudo que sei é que Treblinka e Auschwitz não podem ser narrados. E, no entanto, eu tentarei. Deus sabe que tentarei.

Minha tentativa foi excessiva ou foi insuficiente? Em quinze volumes, apenas três ou quatro penetraram no fantasmagórico domínio dos mortos. Em meus outros livros, através de meus outros livros, tento seguir por outros caminhos. Pois é perigoso deixar-se ficar entre os mortos; eles se agarram a você, fazendo-o correr o risco de só falar com eles. E assim, forcei-me a me desviar deles e estudar outros períodos, explorar outros destinos e ensinar outras histórias: a Bíblia e o Talmude, o hassidismo e seu fervor, o shtetl e suas canções, Jerusalém e seus ecos; os judeus russos e sua angústia, seu despertar, sua coragem. Por vezes me parecia estar falando de outras coisas com o único propósito de conservar o essencial não expresso – a experiência pessoal. Por vezes fico pensando: e se eu estivesse errado? Talvez não devesse seguido meu próprio conselho e permanecido no meu próprio mundo com os mortos.

Eu, porém, não havia esquecidos os mortos. Eles tem seu lugar de direito mesmo nas obras sobre Rishin e Koretz, Jerusalém e Kolvillàg. E mesmo em minhas histórias bíblicas e midrásticas, persigo sua presença, muda e imóvel. A presença dos mortos então chama de modo tão tangível que afeta inclusive os personagens mais afastados. Assim, aparecem no Monte Moriá, onde Abraão está para sacrificar seu filho, um holocausto em oferenda ao seu Deus. Aparecem no Monte Nebo, onde Moisés ingressa na solidão da morte. E novamente em Pardess, onde um certo Elish Bem Abuya, fervilhado de raiva e dor, decide repudiar sua fé. Aparecem em lendas hassídicas e talmúdicas em que vítimas sempre necessitam de defesa contra forças que irão esmagá-la. Tecnicamente, por assim dizer, estão obviamente em outros lugares, no tempo e no espaço, mas em plano mais profundo, mais verdadeiro, os mortos fazem parte de cada história, de cada cena. Eles morrem com Isaac, lamentam com Jeremias, cantam com o Besht, e, com ele, esperam por milagres – mas eles não ocorrerão.

"Mas qual a conecxão?", perguntarão. Acredite, existe uma. Após Auschwitz tudo nos leva de volta a Auschwitz. Quando falo de Abraão, Isaac e Jacó, quando evoco Rabi Yohanan Bem Zakkai e o Rabi Akiba, é melhor entende-los à luz de Auschwitz. Quanto ao Maggid de Mezeritch e seus discípulos, é para encontrar os seguidores de seus seguidores que tento reconstruir seu mundo enfeitiçado e enfeitiçador. Gosto de imaginá-los vivos, exuberantes, celebrando vida e esperança. Sua felicidade me é tão necessária como o foi outrora para eles.

Como conseguiram manter sua fé intacta? Como conseguiram cantar indo ao encontro do Anjo da Morte? Conheço hassídicos que nunca vacilaram; respeito sua força. Conheço outros que escolheram a revolta, o protesto, a raiva; respeito sua coragem. Pois chega a hora em que somente aqueles que não acreditam em Deus não irão clamar a Ele em ira e angústia.

Também não julguem. Mesmo os heróis pereceram como mártires, mesmo os mártires morreram como heróis. Quem ousaria opor punhais a orações? A fé de um importa tanto quanto a força de outros. Não cabe a nós julgar: nos cabe apenas contar a história.

Mas por onde começar? A quem devemos incluir? Encontra-se um hassídico em todos os meus romances. E uma criança. E um velho. E um mendigo. E um louco. Todos eles fazem parte de minha paisagem interior. Qual a razão? Seguidos e perseguidos pelos assassinos, eu lhes ofereço abrigo. O inimigo queria uma sociedade expurgada da presença deles, e eu trouxe alguns de volta. O mundo os negou, repudiou-os, então deixem-nos viver ao menos nos sonhos febris de meus personagens.

É para eles que escrevo.

E, no entanto, o sobrevivente pode sentir remorso. Ele tentou prestar testemunho; foi tudo em vão.

Após a libertação, as ilusões moldaram as esperanças. Estávamos convencidos que um novo mundo seria construído sobre as ruínas da Europa. Uma nova civilização viria à luz. Sem guerras, sem ódio, sem intolerância, sem fanatismo, onde quer que fosse. E tudo isso porque as testemunhas iriam falar. E falaram inutilmente.

Eles prosseguirão, pois não podem fazer diferente. Quando o homem, em sua dor, se cala, diz Goethe, então Deus lhe dá forças para cantar suas tristezas. A partir desse momento, ele não pode mais optar por não cantar, seja seu canto ouvido ou não. O que importa é lutar contra o silêncio com palavras, ou através de outra forma de silêncio. O que importa é juntar, aqui e ali, um sorriso, uma lágrima, uma palavra, e assim justificar a fé há muito depositada por tantas vítimas.

Por que escrevo? Para arrancar do esquecimento essas vítimas. Para ajudar os mortos a derrotar a morte.
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Elie Wiesel Nasc eu em Sighet, Romênia, em 1928. Entre 1944 e 1945 ele e sua família estiveram presos em campos de concentração alemães; seus pais e uma irmã mais moça morreram em Buchenwald. Seu primeiro livro, Noite, publicado em 1958 em francês é uma recordação de suas experiências nos campos de concentração. Em 1978 é laureado Andrew Mellon Professor of Humanities na Universidade de Boston. Autor de L’aube (1960); Le Ville de la Chance (1962). The Gates of the Forest (1964); Le Mendiant de Jérusalem (1968); Almas em Fogo (1971); Messengers of God: Biblical Portraits and legends (1976); Um Judeu Hoje (1978); The Trial of God (1979); The Testament (1981); O Golem (1983); O Quinto Filho (1985); Sinais do Êxodo (1985); Le Crépuscule au Loin (1988); From de Kingdom of Memory: Reminiscences (1990); The Forgotten (1992), entre outros.

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